“Medida provisória” foca em catequese racial e luta de raças

Por Adelson Vidal Alves

O jamaicano Marcus Garvey costuma ser citado com entusiasmo nas canções de reggae. Ele foi um dos grandes nomes do pan-africanismo, fundador da Associação Universal para Avanço dos Negros (UNIA). Suas ideias partiam de suas crenças na pureza racial, fazendo com que sua grande utopia fosse o retorno de todos os negros para a África. Sua ambição permitiu com que o negro Garvey aplaudisse discursos de supremacistas brancos em defesa da segregação. Devolver os negros para seu continente racial era algo que justificaria até mesmo acordos com grupos racistas, tal como a Klu Klux Klan.

“Medida provisória”, longa brasileiro dirigido por Lázaro Ramos e baseado no sucesso teatral “Namíbia, Não!” de Aldri Anunciação, retoma o sonho garveyniano, com tom dramático. Em um futuro Brasil distópico, negros, agora chamados “melanina acentuados”, são deportados à força para a África através de uma medida provisória adotada pelo governo brasileiro. O enredo do filme, então, gira em torno da resistência preta, principalmente no uso de uma lei que impede o Estado de entrar na casa das pessoas sem mandado. Quem não saísse de casa não poderia ser deportado.

O conflito racial é o núcleo da trama, com os negros se organizando em quilombos urbanos, chamados afrobunkers. O filme se dirige em torno da luta de raças, cenas bizarras de racismo e a consagração do Brasil como país oficialmente racista. Do ponto de vista do cinema a trama é chata, com idas e vindas sem sentido, um Seu Jorge firmando-se bizarramente nas cenas de humor.

Historicamente, o Brasil conserva um racismo velado e próprio da nossa história, que jamais viu brotar por aqui leis racistas de segregação como as aplicadas nos EUA. Nossa cultura absorveu o processo de mestiçagem e construiu a identidade intermediária que se expressa nas declarações do Censo nacional. O discurso da raça, tanto na categoria biológica e depois sociológica, se formou contra a realidade. Seja pela impossibilidade de agrupamentos raciais na natureza como na falta de acolhimento voluntário da declaração racial pura. A miscigenação prevaleceu, e só pode ser vencida pela catequese militante, promovida em leis, espaços culturais ou filmes como o produzido por Lázaro.

O maniqueísmo de brancos malvados poderosos e negros heroicos e guerreiros entra na tela pela simplificação de um filme japonês, inverte totalmente nossa realidade e inflama a plateia para a conversão da luta racial como parte de nossa triste vida cheia de injustiças para os homens e mulheres de cor.

O racismo já foi tratado com mais competência e realidade em vários trabalhos do cinema brasileiro. Bastava o foco em questões próprias da nossa dinâmica social, de um racismo não sistematizado no Estado de forma estrutural, mas parte de iniciativas individuais, responsabilidades constatadas fora do determinismo das estruturas. Não foi necessário o estabelecimento de trincheiras, infladas na pedagogia racialista e sustentadas pelo mito da africanidade da pele.

Na sala de cinema onde eu estava, o público caiu em aplausos eufóricos no fim do filme, e se ouviu gritos de êxtase quando a violência de negros contra brancos se davam em lições morais do oprimido virtuoso contra o opressor diabólico. Os que sentaram do meu lado absorveram facilmente o catecismo da raça, saíram mais do que nunca com a certeza de que o Brasil é racista e que precisa ressarcir os descendentes dos que sofreram o peso da escravidão.

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